Jacques Le Goff, em seus estudos sobre a memória coletiva, destaca a importância das lembranças compartilhadas por um grupo social na construção de uma identidade comum e na manutenção da coesão social. A memória coletiva não é apenas um repositório passivo de fatos passados, mas um campo dinâmico de significados, constantemente reinterpretado pelas comunidades à luz de suas experiências presentes e aspirações futuras. No contexto da tragédia do Córrego do Feijão, em Brumadinho, essa perspectiva teórica de Le Goff revela-se particularmente relevante para entender como a comunidade local e a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem de Córrego do Feijão (AVABRUM) têm lidado com as consequências do desastre.
Em 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho resultou em uma das maiores tragédias ambientais e humanitárias do Brasil. A destruição causada pelo fluxo de rejeitos deixou um rastro de morte, sofrimento e perda. Nesse cenário, a memória coletiva dos habitantes de Brumadinho foi profundamente afetada, criando uma necessidade urgente de reconstrução e significado. Segundo Le Goff, a memória coletiva é formada e reforçada por meio de práticas sociais, rituais e símbolos que as comunidades adotam para preservar suas experiências compartilhadas. A AVABRUM emerge como um agente crucial nesse processo, assumindo a responsabilidade de articular, preservar e transmitir a memória do desastre.
A AVABRUM, composta por familiares das vítimas e moradores da região, desempenha um papel central na construção da memória coletiva de Brumadinho. Sua atuação vai além da busca por justiça e reparação; ela envolve a criação de espaços de memória e a promoção de eventos de lembrança. A associação organiza cerimônias, vigílias e manifestações que mantêm viva a memória das vítimas e enfatizam a luta contínua por responsabilidade e mudança. Essas práticas são fundamentais para a consolidação de uma identidade coletiva marcada pela resistência e pela solidariedade, elementos essenciais para a coesão da comunidade.
Além disso, a AVABRUM atua na esfera pública e política, pressionando por políticas que garantam a segurança de outras barragens e a implementação de medidas de prevenção de desastres. A memória coletiva, neste caso, torna-se um instrumento de ação social e política, mobilizando a comunidade e sensibilizando a opinião pública para as questões de segurança e justiça ambiental. A tragédia do Córrego do Feijão, assim, não é apenas um evento a ser lembrado; é uma experiência que informa e orienta a ação coletiva presente e futura.
Le Goff ressalta que a memória coletiva é seletiva e pode ser influenciada por fatores de poder e interesse. A AVABRUM, ao dar voz às memórias das vítimas e de seus familiares, contrapõe-se às narrativas oficiais que, por vezes, podem minimizar a responsabilidade dos culpados ou a gravidade do desastre. Ao documentar e divulgar suas experiências, a AVABRUM assegura que as memórias das vítimas não sejam esquecidas ou distorcidas, garantindo que a história da tragédia seja contada de forma íntegra e justa.
Em suma, a aplicação dos conceitos de memória coletiva e comunidade de Jacques Le Goff ao estudo da tragédia do Córrego do Feijão e à ação da AVABRUM revela a importância vital da memória na construção de uma identidade coletiva resiliente. A memória coletiva não só preserva o passado, mas também molda o presente e o futuro da comunidade, fornecendo a base para a luta por justiça, reparação e transformação social. A AVABRUM, ao articular essas memórias, desempenha um papel fundamental na reconstrução de Brumadinho, transformando a dor e a perda em força e resistência.
LE GROFF, JAQUES. História e Memória. Campina: UNICAP, 2003